Tomás Vieira Mário
“Muito para além das sentenças que o tribunal vier a decretar, no chamado “caso das dívidas ocultas”, é o sistema de governação de Moçambique a ser julgado”
O julgamento do “processo das dívidas ocultas”, iniciado no dia 23 de Agosto em Maputo, vai produzir um impacto extremamente forte, na consciência política dos moçambicanos, renovando profundos questionamentos sobre como o seu país tem sido governado.
Inevitável e compreensivamente, o julgamento deste mega processo judicial vai acordar, entre os moçambicanos, aqueles sentimentos, primeiro de estupefação, de incredulidade, que tiveram, em 2016, quando as primeiras notícias chegaram ao seu conhecimento, ainda revelando, apenas, o calote resultante do negócio da EMATUM.
Sim, primeiro ficamos todos incrédulos; não queríamos acreditar que tais notícias, divulgadas por um jornal americano, constituíssem verdade. Porque não cabia, na nossa consciência, a ideia de que os nossos governantes, aqueles que, com os nossos votos, confiamos a gestão dos negócios da Nação, nos tivessem, tão vilmente, traído, abusando dessa mesma confiança, que neles havíamos depositado.
Da incredulidade, os sentimentos dos moçambicanos haveriam, rapidamente, de passar para um nível ainda mais doloroso: o da revolta, senão mesmo do asco, quando, nos meses seguintes o quadro, de cinzento, passou a preto, com a revelação de mais dívidas, contraídas para a criação de outras duas empresas, de sustentabilidade duvidosa, à nascença: a MAM e a Proindicus!
E quando o véu da tramolhada é finalmente levantado, de novo por fontes externas, os moçambicanos dão-se, então, conta da profundidade do abismo: afinal, em 2013, banqueiros europeus, empresários baseados no Medio Oriente, políticos e altos funcionários do Estado moçambicano, tinham conspirado para estruturar um empréstimo de mais de dois mil milhões de dólares americanos! O governo moçambicano urdira tamanho conluio ao arrepio mais estridente da Constituição da República, reduzindo-a mero conjunto folhas de papel, desprezíveis.
Assim, de um dia para o outro, os moçambicanos deram-se conta de que, os 10 anos antecedentes, de um contínuo e promissor crescimento médio anual de 7%, não eram senão uma sinistra canção para os embalar, antes de os mergulhar num inaudito e entorpecente pesadelo.
Se a chamada comunidade internacional, de que são parte os parceiros financeiros de Moçambique, reagiu imediatamente, condenando as odiosas dívidas, não só com palavras, mas também com actos concretos, já longe disso se mantiveram, por tempo demasiado longo, as principais instituições políticas do país, nomeadamente o governo, o partido FRELIMO e a sua bancada, esmagadoramente maioritária, na Assembleia da República.
Atitude diferente, porém, teve o nosso governo, para com as potências estrangeiras, para as quais apressou-se a prestar esclarecimentos, viajando para as suas capitais, na Europa. Sim, essas mesmas capitais que são, afinal, cúmplices do criminoso embuste, instigadoras e beneficiárias da delinquência financeira internacional, corporizada em instituições financeiras como o Credit Suisse , o VTB e associados.
Com efeito, durante demasiado tempo, os cidadãos moçambicanos, organizados em grupos legalmente estruturados ou não, exprimiram, até à rouquidão, a sua profunda indignação, ante actos que, para alguns, até se confundiam com tentativas de aligeiramento, senão mesmo, de branqueamento do crime, nomeadamente em sede da Assembleia da República.
Mesmo após a divulgação de dois documentos-chave, de esclarecimento do calote – os relatórios da empresa de auditoria Kroll (encomendado com fundos da Embaixada da Suécia) e da Comissão de Inquérito da própria Assembleia da República, a chamada “casa do povo” jamais assumiu, de forma inequívoca, as suas responsabilidades constitucionais.
É assim que, entre outros casos, foram, na chamada “Casa do Povo”, inscritas na Conta Geral do Estado as dívidas da Ematum, e contornado, com recurso a espantosos “relaxamentos”, o levantamento da imunidade parlamentar a Manuel Chang, chave-mestra do infame cambalacho, ora detido em Pretoria, por ordens, de novo, de poderes de fora!
E haviam de ser os cidadãos a, no exercício de seus legítimos direitos de cidadania, lograr o maior facto jurídico-constitucional, condenatório, do calote, até agora consumado: através de uma petição junto do Conselho Constitucional, os cidadãos “exigiram” que o órgão fizesse o que era, por demais, óbvio: declarar nulo o empréstimo e as garantias soberanas conferidas à Ematum no valor de 726,5 milhões de dólares.
O que o conjunto destes factos pode construir, na mente dos moçambicanos, como expectativa do resultado mais importante a sair do julgamento dos réus arrolados neste processo?
A expectativa imediata de muitos de nós há-de ser, certamente, a de ver aqueles com sentenças condenatórias definitivas a serem levados para a cadeia, e lá cumprirem pesadas penas de prisão. E mais: que o Estado recupere o maior volume possível de activos, ora esfera patrimonial dos réus, porque dele se locupletaram, como prémio de sua participação na indiciosa vendeta.
Mas serão, efectivamente, as sentenças condenatórias e a recuperação de activos o resultado mais importante que Moçambique deve esperar deste processo? Não deveremos, pelo contrário, tomar as sentenças condenatórias como mote, como ponto de partida, para a Nação partir para novos destinos, com um Estado refundado?
A Nação precisa de conversar!
Como é já sabido, este processo leva ao banco dos réus, 19 arguidos e um total de 140 testemunhas ou declarantes.
É, certamente, um dos maiores processos de corrupção alguma vez tramitados em Africa, quer pela natureza e densidade das matérias que lhe dão corpo, quer pela qualidade dos arguidos: afinal estão inclusos os responsáveis máximos dos Serviços de Informação e Segurança do Estado!
Se o desfecho final deste processo – que vai, certamente, exigir suor, tempo, serenidade e muito empenho do tribunal – vier a ser aplaudido, como um processo transparente e credível – em vez de um processo politicamente manipulado – as instituições de justiça do país serão merecedores do maior respeito e admiração, primeiro dos moçambicanos e do mundo exterior.
Será hercúlea a tarefa do juiz da causa, no sentido de garantir – e parecer que garante! – uma clara destrinca entre o jurídico e o político, dado que estes dois elementos tenderão a andar juntos, quer pela natureza própria dos sujeitos envolvidos, quer em consequência de estratégias, sobretudo da defesa.
E porquê? Porque, pela sua natureza, pelas condições (estruturais) que o permitiram, este não é apenas um processo que vai julgar os 19 arguidos formalmente neles arrolados: ainda que invisíveis, com estes encontram-se várias centenas, senão mesmo milhares, de outros moçambicanos, igualmente, na qualidade de arguidos. Ainda que com diferenciados graus de envolvimento e culpabilidade.
Porque um negócio, de endividamento de um Estado, em mais de mil milhões de dólares americanos, não é uma operação que possa ser engendrada, desencadeada e realizada num estalar de dedos, por uma dezena de funcionários públicos. Por muito altos que sejam os seus cargos. Incluindo o cargo de Presidente da República. Não!
A contração destas dívidas não foi um “acontecimento”; um “escândalo” isolado, na trajetória política de Moçambique independente, não! Ela representa, tão-somente, um dos mais emblemáticos momentos da trajetória de um sistema de governação, seguido por Moçambique nos últimos 30 anos. É um sistema cuja história pode ser facilmente rastreada.
Ou seja: a contração destas dívidas constitui, tão-somente, um dos momentos de coroação; um dos momentos de glória, de celebração apoteótica, desse sistema.
Não há aqui qualquer novidade para ninguém: trata-se de um sistema de governação em que o acesso e o exercício do poder de Estado têm como motivação primária a instrumentalização do próprio Estado, como meio de acesso e apropriação privada dos recursos da colectividade.
Um sistema de governação onde, a coberto de fidelidades partidárias, o clientelismo e o acesso a oportunidades de diferente ordem passam por práticas que se traduzem em captura do Estado pelas elites políticas.
Nos nossos dias, a saga da corrida das nossas elites políticas visando a apropriação indevida dos recursos públicos, assumindo, por vezes, o nível de pura pilhagem, já não carece de grandes investigações, do nível de doutoramento: qualquer individuo pode obter, sobre ela, um quadro completo, bastando consultar os Relatórios e Pareceres da Conta Geral do Estado, dos últimos anos, disponíveis na página da Internet do Tribunal Administrativo.
E o que estes relatórios nos mostram? Que há mais de 30 anos que os cofres do nosso Estado estão ao dispor de elites predadoras que, por essa via procuram transformar-se em elites empresariais, fazendo pensar num certo “black empowerment” moçambicano, cuja natureza criminal é branqueada politicamente.
Fora do aparelho do Estado, mas sob o seu beneplácito, estamos, muitos de nós, lembrados, dos grandes assaltos ao sistema bancário nacional, na década de 1990. Nesse período, mais de 400 milhões de dólares americanos desapareceram do sistema bancário nacional, no maior escândalo financeiro até então conhecido em Moçambique.
O jornalista Carlos Cardoso e o economista António Siba-Siba Macuácua foram provavelmente assassinados para impedir a descoberta da verdade sobre esta pilhagem e sobre a maneira como os roubos foram efectuados.
Ora, o que as elites predadoras do nosso país pensaram e a seguir fizeram, quando assaltaram e delapidaram o Banco Austral (antigo BPD) e nada lhes aconteceu?
O que as elites predadoras do nosso país pensaram e a seguir fizeram, quando ao longo de anos, assaltaram fundos do Tesouro e nada lhes aconteceu?
Eles olharam à volta e viram que podiam continuar e alargar estas suas práticas, pois “ninguém” as condenava. E assim estas elites predadoras prosseguiram e o seu tentáculo foi-se alargando e o sucesso, dentro do esquema, passou a ser virtude.
É difícil saber como cada moçambicano interpretou o significado da exortação segundo a qual “não devemos ter medo de ser ricos”!
Nas últimas décadas, a consolidação do sistema consistiu em garantir que o poder do Estado gira em torno do Partido no poder; o qual, por sua vez, gira em torno do líder e, finalmente, projecta-se sobre o mundo dos negócios. E o líder, incontestável, não presta contas a ninguém. Nem no Partido. Nem no Estado.
E deste modo construiu-se um sistema de governação em que a contratação das odiosas dívidas, em violação da Constituição da República e da lei orçamental, ocorreu… naturalmente! O Presidente da República, que é Chefe de Estado, Chefe do Governo e Presidente do Partido no poder, simplesmente deu um estalo de dedos, chamando o SISE e…uma Nação inteira ficou bloqueada. Por décadas!
Por isso, na tenda gigante instalada junto da cadeia penal de máxima segurança, da Machava, vão apenas estar sentados 19 arguidos; porém em representação de algo bem maior que eles todos: vai estar em julgamento um sistema de governação!
Nessa medida, qualquer que venha a ser o desfecho do processo – com absolvidos e condenados – tais decisões apenas terão algum significado para a Nação, se assinalarem o inicio de um processo mais longo, mais envolvente, de um debate nacional profundo, meticulosamente estruturado em que, sem culpados nem inocentes, procuremos, todos, resposta à seguinte pergunta:
“Como é que nós, moçambicanos, chegamos ao ponto de dever ao mundo, mais de dois mil milhões de dólares, de dívidas contraídas sem o nosso conhecimento e em violação da Constituição da Republica? “
Muito para além das sentenças, a Nação precisa de conversar! Um processo catártico nacional!
Moçambique é governado, desde a independência, há 46 anos, pela mesma força política que, enquanto movimento nacionalista, liderou a luta armada da sua libertação do colonialismo português, a Frelimo.
Nessa medida, é pois, sobre os ombros desta mesma força política que recaem, em primeiro lugar, quer as glórias, quer os fracassos e as responsabilidades pela governação da Nação. Por isso cabe a ela, ainda, o privilégio histórico de desencadear e liderar um processo nacional de reformas estruturais, abrangentes e arrojadas.
Com efeito ao nível do Estado e das forças político-partidárias do país, o debate e as acções até agora encetadas, em torno destas dividas, apenas têm incidido sobre as suas implicações jurídico-legais, quer olhando para dentro, quer olhando para fora do país.
Porém, jamais ocorreu, dentro das principais forças políticas do país, nomeadamente do Partido Frelimo, qualquer abordagem de fundo, abrangente e ousada, que questione:
O contexto, primeiro dentro do próprio Partido Frelimo, e em segundo lugar, no plano constitucional e governativo, que permitiu a ocorrência destes actos lesa-pátria;
Segundo, e em consequência, as medidas, de reformas estruturais, a serem consideradas, repete-se, em ambos os planos: no plano interno, da própria Frelimo, e no plano jurídico- constitucional, tais que salvaguardem, para o futuro, a segurança e a estabilidade da Nação.
É legítimo – quase inevitável – esperar que o próximo Congresso da Frelimo produza e transmita à Nação uma mensagem reformadora, de ruptura, finalmente, com a trajectoria da captura e instrumentalização do Estado, pois, muito para além daa sentenças que o tribunal decretar – que são, evidentemente, importantes como expressões de justiça – este processo simboliza um enorme clamor da Nação:
“A Nação precisa de conversar! Para refundar o seu Estado!” E para poder, de novo, liderar o processo, a Frelimo deve, primeiro, refundar-se a si própria. Porque aqueles 19 erguidos são apenas alguma expressão física de um sistema de governação, ora em juízo!
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