Terroristas obrigam mulheres a levar às costas cabeças decepadas de seus maridos

Palmira Velasco

Narração de Sofrimento

Ao longo dos últimos 57 anos, os moçambicanos têm vivido em guerras intermitentes, desde a luta armada de libertação nacional, iniciada em 1964, até à guerra dos 16 anos, que terminou com o Acordo Geral de Paz, em 1992. Contudo, pelo carácter particularmente cruel e sórdido dos actos dos terroristas, que produzem profundos traumas aos sobreviventes, estes consideram esta guerra como a violenta de todas. Sobretudo as mulheres, frequentemente obrigadas a assistir, impotentes, ao assassinato e decapitação, a sangue frio, de seus maridos e filhos, no meio de gritarias selváticas, dos facínoras, então embriagados de sangue humano.

“Cortaram as cabeças dos nossos maridos, obrigaram-nos a embrulhá-las em capulanas e transporta-las às costas, leva-las até a aldeias vizinhas, para anunciar que eles já chegaram e estão próximos. Assim nós devíamos ficar a saber que devíamos abandonar as nossas aldeias, que eles iam queimar, e nunca devíamos pensar em regressar”.

Relatos pesados e traumatizantes, de mulheres que, impotentes, foram obrigadas a assistir a actos barbáricos, de morte e esquartejamento de seus maridos, pelos facínoras da guerra terrorista de Cabo Delgado, sua província “amaldiçoada” . Vezes sem conta, ao narrar suas estórias de amargura, estas emocionavam-se, chorando convulsivamente. Contagiadas, as pesquisadoras do SEKELEKANI, Palmira Velasco e Nelcia Tovela, desatavam, também, a chorar.

A equipa do SEKELEKANI percorreu recentemente centros de acolhimento de deslocados desta guerra na Província de Nampula, onde, além de testemunhos de sofrimento e horror, também ouviu estórias de anónimas heroínas, que deram à luz seus bebés na mata, em condições de fuga, bem como relatos de gestos de profunda solidariedade e ajuda mútua entre famílias despojadas de tudo, sobretudo da sua própria dignidade.

Bebendo sangue humano

CORRANE é o nome do maior centro de reassentamento de deslocados de guerra da Província de Nampula, situado no Posto Administrativo de Namialo, Distrito de Meconta. Nesta sua deslocação, a equipa do SEKELEKANI tinha um objectivo muito específico: recolher estórias do impacto da guerra sobre a mulher e a criança.

Vista parcial do Centro de Reassentamento de Corrane, em Namialo.

SEKELEKANI ouviu relatos de dezenas de mulheres, cuja identidade vai ser oculta ou falsificada, por razões éticas e de segurança.

Fatima Alaji, acomodada em Namialo, vivia na aldeia de Miangalewa, no Distrito de Muidumbe, na Província de Cabo Delgado. Ela recorda que os ataques à sua aldeia começaram em Maio 2019. Da primeira vez eles entraram na aldeia à noite e atacaram durante dois dias e saíram. Voltaram a atacar a aldeia, sempre à noite e desapareciam. Agiram assim, durante sete dias. Assim as pessoas pernoitavam no mato e regressavam às residências nas manhãs. No oitavo dia, os atacantes entraram na aldeia, de dia e, surpreenderam algumas pessoas em casa.

“Uns conseguiram fugir para o mato, mas os insurgentes vasculharam, recolheram-nos e obrigaram-nos a mostrar as casas onde viviam. Alguns insurgentes escondiam as caras, outros não. Falavam em Emakua, Ci-maconde e Kiswaili. Depois escolheram, aleatoriamente, alguns homens e, ali mesmo, os decapitaram, degolando-lhes as cabeças. A seguir bebiam o sangue das pessoas mortas. A seguir deram ordens para algumas mulheres juntarem lenha para acender lume. Aí eles pegaram em três cabeças cortadas para servir de suporte da panela, em que cozeram carne humana. A seguir obrigaram-nos a comer aquela carne, com as crianças “, conta Fatima, aos prantos.

“Depois da carnificina, os terroristas bebiam sangue das vítimas….”

De seguida acrescenta: “Depois dos insurgentes abandonarem a aldeia, os homens que sobreviveram recolheram os pedaços dos corpos decapitados e os enterraram rapidamente. No mesmo dia iniciamos uma longa caminhada até ao Distrito de Chai. Eu, meu marido e uma neta, conseguimos transporte que nos levou até a Província de Nampula. A minha família ficou dispersa porque cada um fugiu para o seu lado. Mais tarde um dos meus filhos e minha nora juntaram-se a mim, aqui em Namialo. Ainda não sei do paradeiro dos outros”.

“Vi o meu tio a ser morto e esquartelado….”

 

 

 

 

 

 

Zaituna é outra sobrevivente reassentada em Namialo. Relata que na sua aldeia em Xitachi, no Distrito de Muidumbe, os terroristas convocaram a todos os homens a uma reunião. Chegados ao local, os presentes foram agrupados de acordo com as suas crenças religiosas. Formaram um grupo de muçulmanos, um de cristãos e um de ateus. De seguida ordenaram os grupos dos muçulmanos e dos ateus a abandonarem o local. E mataram todos os que disseram que eram cristãos. A população ficou aterrorizada e fugiu da aldeia. Ninguém teve coragem de voltar para casa. Os corpos de nossos familiares foram abandonados e alguns foram devorados por cães. A aldeia ficou deserta”, diz Zaituna, entre lágrimas e soluços.

A cura de traumas

O Conselho Cristão de Moçambique é o actor logístico que garante o armazenamento dos alimentos, transporte e distribuição directa da assistência alimentar a cerca de 70.000 beneficiários distribuídos em 17 distritos da Província de Nampula. Por ter poucos funcionários o CCM, trabalha com voluntários de diferentes igrejas. Em cada local existem pontos focais do governo através do SDPI que articulam as actividades com o CCM.

Artur Colher, Delegado Provincial do CCM, em Nampula, informa que desde Março de 2020 a sua instituição, para além do trabalho logístico, presta apoio psico-social aos reassentados do Centro de Corrane, como forma de reduzir-lhes o impacto dos traumas causados pelas atrocidades da guerra.

David Magaia, Pastor e membro da comissão que presta apoio psico-social e espiritual aos deslocados, explica que quando alguém perde um ente querido fica na esperança de receber um tratamento digno. Quando a pessoa já abalada psicologicamente, é ainda  destratada, acaba pensando: “ Porque é que não morri na guerra, com o meu marido ou com os meus filhos”?

“Nas sessões de narrações, as mulheres choram e nós, conselheiros psico-sociais também choramos”- Pastor David Magaia, do CCM.

As comissões de apoio psico-social fazem visitas domiciliárias para perceberem das necessidades de apoio das famílias. Criam grupos de 12 pessoas, de acordo com os grupos etários e de género. As vitimas são encorajadas a contar historias das suas experiências traumatizantes. As histórias são voluntárias e fazem parte da terapia.

Os deslocados têm contado horrores indiscritíveis. Magaia reconta que os terroristas, quando chegam a uma aldeia, reúnem a população e perguntam se alguém já viu uma pessoa a ser esquartejada em 100 pedaços. De seguida escolhem, de forma aleatória, algumas pessoas para demonstrarem a barbárie . No momento de esquartejamento obrigam a todas as pessoas a assistirem. Ao chegarem no pedaço 100, eles emitem gritos de festa, e depois decapitam as vítimas. A seguir exigem aos presentes para assistirem à contagem dos pedaços dos corpos cortados.

 

 

 

 

 

 

 

 

“Nas sessões de narrações, frequentemente as mulheres choram e nós, conselheiros psico-sociais também choramos. E aí paramos por uns cinco a 10 minutos, para nos recompormos e continuarmos as sessões”, conta David Magaia que acrescenta que há situações que precisam de apoio clínico. Nesses casos as vítimas são encaminhadas para outras entidades, de especialidade medica.

Estes dramas vividos, no dia-a-dia pelos conselheiro “leigos”, do CCM obrigam-nos também a passar por terapias para diminuírem a carga do stress que os afecta. “Algumas vezes fazemos retiro para buscar paz de espírito e forças para continuar a ouvir desabafos dos deslocados” explica o pastor Magaia.

Entretanto uma das questões que preocupam as mulheres reassentadas, envolvidas em relações poligâmicas, é o facto de o chefe de família receber apenas uma casa onde devem partilhar as duas ou mais mulheres e os respectivos filhos.

Para David Magaia esta é uma questão que devia ser revista, tendo em conta a particularidade das famílias de Cabo Delgado, onde a poligamia é uma pratica muito generalizada.

Com a mãe às costas

Tomazina Daniel, de 67 anos, é natural da Mocímboa da Praia. Ela fugiu da guerra para Nampula porque viu muitos membros da sua família a serem mortos: os seus dois filhos e quatro irmãos. Lembra que foi na madrugada de um dia, do mês de Março do ano em curso, que a sua aldeia foi cercada pelos terroristas. Começaram a ouvir-se disparos. E enquanto uns usavam armas, outros avançavam com catanas e despedaçavam qualquer pessoa que encontrassem.

“Eu consegui puxar a minha mãe para o mato. Ainda me lembro dos gritos de dor das pessoas que sucumbiam. Queimaram todas as casas da aldeia. Do esconderijo, começamos a caminhada até à aldeia de Diaka, onde fomos socorridos por algumas famílias. Deram-nos mandioca crua para comer. Depois continuámos a andar”.

“Eu e o meu marido levamos a mamã às costas, pois ela já não podia caminhar”

Depois de reencontrar o marido durante a caminhada, Tomazina caminhou de Mocímboa da Praia até ao Distrito de Mueda. A caminhada durou três dias. A mãe, com mais de 80 anos, e já com a visao diminuída, acabou ficando sem forças, na caminhada: Tomazina teve que leva-la às costas.

“Apesar de todos os perigos, não podia, em circunstância alguma, abandonar a minha mãe. Vi meus quatro irmãos e meus dois filhos a serem mortos. A única pessoa adulta da família que me resta é a minha mãe. Foi uma caminhada longa e difícil porque ela locomove-se e vê com dificuldades. Eu e o meu marido tínhamos que transporta-la às costas”, conta Tomazina. Ela relata ainda que eram muitas pessoas a caminharem pela estrada, em direcção à Mueda e, não havia tempo para descansar, nem para socorrer um ao outro.

Chegados em Mueda, Tomazina e o marido pediram dinheiro a familiares para pagar o transporte que os tinha levado até ao Distrito de Montepuez, já no Sul de Cabo Delgado. Mas por causa do trauma que tem, por ter visto os seus filhos e irmãos e a serem mortos, não se sentiu segura em Montepuez: preferiu seguir viagem para mais longe, e assim viajou   até à Província de Nampula..“Apesar de estar segura aqui no Centro de Reassentamento, não estou em paz. Nas manhãs faço meus trabalhos domésticos, mas não paro de reviver todos os episódios pelos quais passei, desde a madrugada em que a minha aldeia foi atacada”, explica Tomazina.

O Milagre que veio do mato

Sara estava no nono mês de gestação quando os insurgentes atacaram a sua aldeia, em Macomia. Ela viu o seu marido a ser morto e esquartejado à catana. Em pânico, ela fugiu para o mato onde encontrou outras pessoas escondidas. Pouco tempo depois iniciou a longa marcha pelo mato adentro. O medo superou as contracções e dores do parto. Na caminhada, rebentou a bolsa de água, indicação de que o bebé estava prestes a nascer. Ajeitou-se num arbusto e gritou, pedindo socorro.

“Muitas pessoas tinham já partido, e eu não conseguia alargar o passo porque já estava cansada. Gritei de desespero. Ninguém teve coragem de ficar comigo porque era noite e era um momento muito tenso porque estávamos todos em fuga. O meu grito de socorro podia ter sido fatal porque se os insurgentes estivessem por perto, nem quero imaginar o que teriam feito comigo”, conta Sara.

Já era manhã quando de novo gritou por socorro. Sara viu aproximar-se um homem que também fugia da guerra. Era a sua salvação. Sem experiência nenhuma e cheio de coragem, o homem ficou com a Sara até o bebé nascer. Cortou o cordão umbilical e de seguida embrulhou o recém-nascido na capulana da mãe.

Esperaram algumas horas para que Sara recuperasse alguma energia. Apesar das dores, a Sara teve que caminhar enquanto o homem levava o bebé, até encontrarem uma aldeia onde a parturiente recebeu alguma assistência. A aldeia estava quase deserta porque a população também estava em fuga por causa dos ataques dos insurgentes. De Macomia, Sara, o desconhecido que a ajudou durante o parto e o bebé foram transportados de carro até Namialo.

O comovente episódio de Sara e do seu “herói” é tido, no centro de reassentamento, como uma impressionante historia de superação, que associa rara coragem e bondade: do seu encontro em circunstâncias de extrema necessidade, nasceu uma relação de amor, que os levou a decidir constituir uma família. Eles decidiram dar ao bebé nascido no mato o nome de Milagre.

“Fugiram da guerra ou vieram para comer”?

A Província de Nampula é a que mais deslocados de guerra provenientes da Província de Cabo Delgado, recebeu, até presentemente. São cerca de 65 mil pessoas deslocadas de guerra que estão distribuídos em 21 distritos. Entretanto, do total dos deslocados 53% são mulheres, 47% são homens. Destas percentagens, 25% são mulheres adultas, 20% homens adultos e 54% são menores de 18 anos de idade de ambos sexos.

“Por vezes perguntam-nos se somos mesmo deslocados ou só queremos comida…”

Alberto Armando, Delegado do Instituto Nacional de Gestão de Desastres (INGD) em Nampula explica ao SEKELEKANI que o número referido é apenas indicativo, porque é baseado no registo efectuado pelas autoridades, no centro de trânsito.

“Há pessoas deslocadas de guerra que não passaram pelo centro de trânsito e estão alojadas em casas de familiares ou amigos. Mas também existe mobilidade de pessoas que decidem mudar-se de um lugar para outro, onde acham que estão mais confortáveis”, explica o Delegado do INGD.

Segundo dados do INGD os deslocados que vieram à Província de Nampula com referência de famílias, vivem, na sua maioria, exactamente na Localidade de Namialo. Os que não tinham referências familiares foram concentrados em instalações da Igreja Católica de Namialo que funcionaram como centro de trânsito. Os deslocados ficavam dois a três dias. Quando a igreja ficou superlotada , as pessoas deslocadas foram acolhidas nas quatro escolas de Namialo, entretanto encerradas, devido à pandemia da COVID-19.

“Quando a situação do COVID 19 melhorou houve necessidade de se reabrirem as escolas. Foi quando o Governo Provincial decidiu abrir o Centro de Reassentamento de Corrane, no Distrito de Meconta. A prioridade foi de reassentar as pessoas que não tinham família em Nampula e que estavam albergadas nas salas de aulas”, explica Alberto Armando. Ele acrescentou que a Província de Nampula recebe cerca de 10% do total de deslocados de guerra, sendo que cerca de 90% permanecem na Província de Cabo Delgado.

“A FAO é que manuseia e distribui alimentos; o INDG apenas coordena”- Alberto Armando, INDG, Nampula.

Durante a pesquisa SEKELEKANI recebeu algumas queixas de maus tratos aos deslocados de guerra, quer no centro de reassentamento de Corrane, quer fora dele, perpetradas por alguns agentes comunitários ao serviço do INGD. Estas queixas foram referidas também por agentes voluntários ao serviço do Conselho Cristão de Moçambique – CCM que recebem queixas dos reassentados.

Na fuga desordenada, perante ataques, muitas as famílias separam-se, pois cada individuo vai seguir o caminho que lhe parecer mais seguro, na tentativa de escapar da morte. É assim que muitas famílias ficaram separadas. Entretanto, com sorte, algumas reencontram-se em centros de reassentamento como o de Corrane . Quem chegue primeiro ao centro de reassentamento, a tendência natural é procurar saber se algum membro da sua família, que ficou para trás, em Cabo Delgado, estará vivo e em segurança.

Entretanto, quando alguém está em lugar seguro, a tendência é chamar seus familiares para junto de si, como em Corrane ou Namialo. Muitas vezes, estes factos têm provocado processos de triagem, muito exigentes, conduzidos pelas autoridades, para apurar a sua veracidade , à chegada de familiares a Nampula.

Entretanto, no caso de recebimento de novos membros da família, no centro de reassentamento, a cesta básica de alimentos, calculada pelo número inicial dos membros da família, não é alterada, para incluir os novos membros. Estes casos são muito frequentes, pois a solidariedade familiar e comunitária é muito forte, no centro de reassentamento. Existem, inclusivamente, casos de famílias com números de agregados muito altos, porque abrigam menores órfãs ou que perderam o contacto com seus familiares, em circunstâncias de fuga desordenada de suas aldeias.

“Há famílias numerosas porque acolhem crianças separadas dos pais na fuga”.

Os reassentados têm referido, de forma repetitiva que alguns voluntários destratam-nos. Por exemplo, “quando recebemos nossos filhos e familiares que chegam aqui mais tarde, e pedimos o aumento da comida, é normal ouvir e, de maneira ofensiva, questionarem: “vocês estão a fugir da guerra ou vieram aqui para comer?”, Queixaram-se algumas entrevistadas.

Situação constrangedora quer para os reassentados como para o INGD. Sobre este assunto, o Delegado do INGD respondeu que a instituição, em Nampula apenas tem 20 trabalhadores, mas tem “pontos focais’ que fazem a ligação entre a instituição e as comunidades, através dos Serviços Distritais de Planificação e Infraestruturas – SDPI.

“O INGD não manuseia e nem faz a distribuição de donativos aos deslocados. Esse trabalho de logística está a cargo do Programa Mundial de Alimentação (PMA) que também usa terceiros. O Conselho Cristão de Moçambique (CCM) é responsável de fazer a distribuição dos donativos, em todos os distritos”, explica Alberto Armando.

As mulheres, embora agradeçam todo o apoio que têm recebido, solicitam ainda um pouco mais de atenção para a sensibilidade de género e pedem pacotes de higiene pessoal, incluindo sabão e pensos higiénicos.

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Palmira Velasco (texto) e Nélcia Tovela (fotos)