Perto de oitenta mulheres da Província de Nampula viram a sua dignidade restituída, após beneficiarem de tratamento à fístula obstétrica, doença pela qual se viam excluídas do convívio social ou, por vezes mesmo, abandonadas pelos próprios maridos. A operação ocorreu no quadro de uma campanha que iniciou em Agosto de 2019, terminando em Janeiro do presente ano.
A campanha, que teve como palco a Cidade de Nampula, envolveu médicos-cirurgiões das Províncias de Cabo Delgado, Maputo, Nampula e Zambézia. Envolvidos estiveram também ainda técnicos provenientes de diferentes distritos da Província de Nampula que levaram consigo pacientes para tratamento.
A fístula obstétrica é uma lesão entre a bexiga e a vagina ou entre o retro e a vagina, provocada por um parto prolongado, e provoca perda descontrolada e permanente de urina e ou fezes por via vaginal, colocando a mulher em situações de profundo desconforto e vergonha, devido ao odor desagradável que a estigmatiza. Envolvidos estiveram também técnicos provenientes de diferentes distritos da Província de Nampula, os quais levaram consigo pacientes para tratamento.
O número de doentes submetidos a tratamento durante esta campanha está, contudo, bem longe de espelhar a dimensão desta doença em Moçambique, a qual sujeita milhares de mulheres e raparigas a dolorosas condições de vida, como a exclusão social por vezes envolvendo membros da própria família ou da comunidade.
A fístula como consequência de gravidez precoce
Segundo um dos cirurgiões envolvidos na campanha, Bernardo Leite Monarapa, algumas lesões são tão graves, que não há cirurgia que as possa curar. Nestes casos, a opção é o tratamento com recorrência a técnica de derivação, através da qual a urina e as fezes passam a ser expulsas pelo ânus. “Porém, esta opção implica o acordo expresso da paciente”
Tal reafirma o Dr. Leite, a maior parte das fístulas obstétricas têm ocorrido em resultado de partos arrastados. Por sua vez, muitas destas anomalias ocorrem em adolescentes de 14 a 16 anos de idade, que engravidam em consequência de uniões matrimonias forçadas com adultos.
Entretanto, Moçambique já tem técnicos qualificados, com capacidade para responder a esta doença, porém faltam recursos financeiros para cobrir todo o país. Os casos que chegam aos hospitais são mínimos, e a falta de informação sobre a possibilidade de tratamento é uma das principais causas desta realidade.
O médico-cirurgião apela que as equipas de sensibilização alarguem cada vez os raios de cobertura territorial e o período de pré-aviso as mulheres grávidas, pois leva sempre muito tempo para as pacientes chegarem às unidades sanitárias.
Histórias de abandono e de superação
SEKELEKANI ouviu depoimentos de algumas mulheres que já superaram a doença e retomaram vidas saudáveis vida, livres de sem constrangimentos.
“Tive fístula aos 28 anos. A minha gravidez foi acompanhada pelo pessoal do Centro de Saúde de Natire. Durante as consultas de pré-natal não se detectou qualquer anomalia, parecia que estava tudo bem, até à altura do trabalho de parto, quando tudo se complicou…” conta Mariamo.
Mariamo, de 33 anos, vem do Distrito de Angoche. Viveu três anos com fístula. A doença surgiu durante o seu primeiro parto, no hospital de Natire. Depois de as enfermeiras concluírem que o canal de parto estava obstruído e nada podiam fazer, transferiram-na para o Hospital Distrital de Angoche.
Já no hospital de Angoche, Mariamo deu à luz um nado morto e contraiu fístula. Conta que vive o trauma até hoje, embora com menos intensidade, após ser operada.
“Fui abandonada pelo meu marido, desprezada pela família e até pela comunidade. Eu nunca reagia; ficava isolada e não tinha vontade de viver, até que uma tia, que trabalha no Hospital Rural de Angoche veio conversar comigo e encaminhou-me aos médicos”.
Depois das análises médicas Mariamo ficou a aguardar em casa, até que um dia recebeu a chamada telefónica que iria mudar a sua vida. Era do Hospital Rural de Angoche e a voz doutro lado da linha, trazia a boa nova de que ela há muito esperava: devia apresentar-se no hospital para fazer a operação à fístula. Em Maio deste ano foi submetida à rectificação.
“Agora sinto-me melhor. Dantes sentia, sempre, frio em consequência da doença. Agora estou muito animada embora sinta algum desconforto, nalgumas ocasiões” diz Mariamo.
Segundo conta, os pais sempre diziam que a sua doença foi originada por feitiço. Contudo depois de frequentar o hospital, onde recebeu explicações medicas, percebeu que a sua doença nada tem a ver com feitiço. Ela explicou ainda que não sabe por que só aos 28 anos engravidou, pois já estava casada há 10 anos e esperava, desde então, ter filhos. É muito comum, em diferentes regiões do Norte do país, comum, na região meninas engravidarem e tornar-se mães entre os 12 e 15 anos de idade.
Mariamo reconhece ser uma mulher com sorte porque na altura que tinha a doença e foi abandonada pelo marido, conheceu um outro homem com quem casou. O novo marido encarou com seriedade a sua doença e deu-lhe esperança de um dia vence-la e estar bem.
Hoje, Mariamo é sinónimo de esperança para outras mulheres também com fístula. Ela incentiva e mobiliza outras mulheres da comunidade, com o mesmo problema, para se dirigirem ao hospital.
“Mesmo sem dinheiro e sem família na cidade podem dirigir-se ao hospital que serão atendidas e sairão curadas, pois eu sou exemplo de que a fístula tem cura”, apela Mariamo.
Agentes comunitários de humanização da saúde
Amina António vive com fístula há cerca de 23 anos . Ela e sua família vivem desesperadas e estavam conformados, julgando que a fístula não tem cura. Agora com 48 anos, Amina fez oito partos, dos quais e cinco nados mortos e três filhas vivas. Nunca tinha ouvido falar das causas da fístula e muito menos que têm cura. Vive atormentada e pensa que a qualquer momento vai morrer.
Amina e sua família receberam uma lufada de ar fresco e esperança quando o agente de Humanização da Saúde, Eusébio Cássimo explicou-lhes a possibilidade de tratamento gratuito à fístula, no Hospital Rural de Angoche.
Por sua vez, Sahura Ibraimo tinha 20 anos quando engravidou. Teve uma gravidez aparentemente normal e com acompanhamento nas consultas pré-natal, no Centro de Saúde de Nanhupo Rio, no Distrito de Nametil.
Quando chegou a altura do parto, ela dirigiu-se ao hospital mas teve muitas dificuldades no trabalho de parto. Quando as parteiras depararam-se com dificuldades de ajudá-la, ela foi transferida para o Hospital Central de Nampula onde teve parto à cesariana, mas de um nado morto.
“Quando voltei ao hospital para tirar os pontos descobriram que eu tinha fístula. Passei um ano com a doença, mas graças a Deus, meu marido não em abandonou e tive apoio da família”, conta Sahura.
Ela está num casamento poligâmico e diz que não espera mais ter filhos porque desde que teve fístula não mais voltou a envolver-se com o marido, pois não gostaria de passar pela mesma experiência. Ficou traumatizada.
Eusébio Luís Cássimo, agente do Comité de Co-Gestão e Humanização de Saúde explicou ao SEKELEKANI que este órgão foi criado para procurar minimizar alguns problemas de saúde junto às comunidades que se encontram longe de postos de saúde.
Os agentes do Comité têm como missão educar as comunidades para se prevenirem ou procurar tratamento de doenças como cólera, malária, catarata, hidrocelo, fístula, ainda recolher suas preocupações sobre o desempenho das unidades de saúde locais.
Segundo o Eusébio, em 2019, o Hospital Rural de Angoche operou 10 mulheres, enquanto outras cinco foram transferidas para o Hospital de Nampula por terem fístula que requer a atenção de especialistas de outro nível.
O Hospital Rural de Angoche tem recebido pacientes dos distritos de Larde, Liupo e Mogovolas para reparação à fístula.
Agira Cintura, do Distrito de Monapo, não sabe da sua idade; ela teve fístula depois de um parto em que teve nado morto. Depois do incidente Agira teve acompanhamento médico. A sua família e vizinhos nunca a desprezaram, mas ela sentia-se mal e com vergonha, porque tinha saída descontrolada da urina e das fezes.
Quando o marido apercebeu-se que Agira tinha fístula, ele abandonou-a e nunca mais voltou para casa. “Eu era a segunda esposa. Ele abandonou-me e foi viver com a primeira”, contou Agira.
A Agira, por sua vez, estava num segundo casamento e, essa era a primeira gravidez do segundo casamento, depois de ter tido três filhos do anterior casamento.
Segundo ela conta, a sua gravidez foi normal, sem indicação de qualquer problema, pois foi seguida na unidade sanitária e, cumpriu com todas as consultas pré-natais. Mas na altura do parto, este arrastou-se por oito horas, provocando-lhe graves lesoes na bexiga. e assim ficou dois anos com a doença , ate ser operada este ano, 2019.
“Muitas mulheres aproximam-se e perguntam como consegui curar-me e eu explico que devem ir ao hospital, que serão tratadas como eu”, diz Agira
Apesar de ter confiança na unidade sanitária e de apelar a outras mulheres para irem ao hospital fazer o tratamento da fístula, Agira crê que houve feitiço sobre ela, pois ela consultou um curandeiro antes da operação no hospital.
Por sua vez, Catarina Carlitos é casada e mãe de sete filhos. Viveu com fístula durante dois anos. Teve a doença quando ia dar o oitavo parto. Teve problemas e foi levada ao hospital de Monapo onde foi operada. O bebe, contudo, nasceu sem vida e ela teve fístula.
“Já pensei que fosse feitiço e fui fazer tratamento tradicional. Alguns curandeiros disseram-me que havia sido drogada e deram–me medicamento tradicional, mas não resultou em nada. Só no hospital é que conseguiram resolver esta doença”, conta Catarina.
Catarina diz que teve muito apoio do marido e dos familiares, pois ajudaram-na e apoiaram-na para que fosse ao hospital fazer a cirurgia: eis a mais importante receita para a cura à fístula obstétrica: em Moçambique: acesso à informação, oportunidade e apoio da família e da comunidade.